* Camilo Maia Moraes 4i3r5z
As únicas coisas que adquirimos alimentando o antagônico desejo de não virmos a utilizá-las são a cobertura do seguro, o plano de saúde, o seguro de vida, o plano funerário, garantias que muitos possuem e quase sempre usufruem a contragosto, pois estão sempre atreladas à falha, ao sinistro, à morte.
Regra geral, a grande maioria das coisas são mesmo adquiridas junto às ânsias inerentes ao gozo, que sempre aguçam e que vêm a ser satisfeitas imediata ou remotamente. E por conta disso é vital pensar muito antes de adquirir uma arma de fogo, que é ligada à morte, mas que também é vinculada ao sedutor e perigoso desejo de poder, de subjugação. E é também preciso continuar pensando mais ainda depois de adquiri-la e sobre mantê-la consigo quando se sabe que o desfruto é fatal.
Dois homens tidos como bons compram suas armas de fogo em tese para protegerem a si e suas famílias de homens tidos com maus, saem para ear com seus cães numa noite comum de sábado, encontram-se, divergem, desentendem-se, uma acerta o outro, um morre e o outro é preso. E o que poderia terminar no costumeiro, rápido e pueril “vá àquele lugar; eu, não, vá você que é mais azul” termina no além e numa cela tão dura quanto fria em Viana-ES.
Infelizmente não é caso isolado, já que a tragédia da noite de sábado, 20 de abril de 2024, em Mata da Praia, bairro nobre de Vitória-ES, comunica-se com as histórias dos maridos que diariamente matam suas companheiras, do filho que ceifou o pai, da moça que acertou a amiga dentro de casa, com os casos de tiros acidentais, ou com aquele do senhor que baleou o jovem por briga de trânsito, assim como se conecta com o caso também recente dos vizinhos em Montanha-ES e de vizinhos e vizinhos Brasil a dentro.
A arma, em tese, é adquirida para a legítima defesa contra os bandidos, ladrões, estupradores, assassinos, conforme se diz cotidianamente, mas é mesmo diariamente descarregada, em meio ao desatino, dentro de casa, contra a própria família; na rua do bairro, contra os vizinhos; no bar, contra conhecidos ou até contra amigos; no trânsito, contra quem divide a via e numa infinidade de hipóteses absolutamente dissociadas da razão pela qual suposta e alegadamente foi adquirida, vindo assim a ser disparada por gente que até então, talvez como você e eu, não tinha “agem pela polícia” contra gente que acabou morrendo também sem vir a ter.
Em meio à polarização pela qual nossa sociedade enveredou fica tudo ainda mais complicado e os atritos, os ataques, os conflitos, o ódio que vêm sendo cultivados parecem sempre fermentar, como que servindo de combustível ao embate, à agressão, e não necessariamente em função de divergências políticas, pois ninguém pode controlar onde, quando, nem em quem essa raiva cultivada pode desaguar.
Tudo que a gente alimenta cresce, evolui, desenvolve-se, toma forma… Diante de tragédias como essa nossa sociedade precisa ponderar acerca daquilo que vem alimentando em si e nos outros.
O texto aqui não é para julgamentos e pode ser um valioso alerta para você, amigo meu, que mantém sua linda arma em casa ou debaixo de braço, a fim de que as histórias de que aqui se cuida não se comuniquem lamentavelmente com a sua num futuro próximo ou remoto, cabendo aqui a indagação: de que tipo de sentimento você, que anda armado, vem se municiando?
Em muitos casos a própria decisão de adquirir uma arma já foi em si um tiro pela culatra.
De meu lado, nunca fui assaltado e a grande maioria das pessoas que conheço também nunca foi. E aí sou eu que me pergunto: quais seriam minhas chances – em vindo a ser assaltado, ou ilicitamente achacado de qualquer outra forma, e em estando com uma arma justamente em mãos no exato momento – de vir a me defender com eficácia? É matemática muito difícil para mim que sou de humanas.
Por outro lado, já ei, o e certamente ainda vou ar por situações sociais de extremo estresse e de latente descontrole emocional ao longo da vida, assim como você. E nesse contexto, fazendo uma conta ligeira de boteco em papel de pão, que bom para mim e para a sociedade que eu não tenha uma arma, pois, pelas minhas leigas noções de estatística, tenho também certeza de que eu, com uma arma, tenho muito mais chances de virar o agressor na história sombria de uma ação penal do que de encampar um legítimo defensor de mim mesmo ou de quem quer que seja.
O triste e previsível duelo de sábado, em Mata da Praia, trouxe-me à memória Put Down That Weapon, faixa do álbum Diesel and Just, 1987, da banda australiana Midnight Oil (Put down that weapon / Or we’ll all be gone / I must know something / To know it’s so wrong / And it happens to be an emergency / Some things aren’t meat to be / Some things don’t come for free), recomendação que logo faz 40 anos, que continua necessária, atual e que aqui vem a calhar mais ou menos nestes termos: Abaixe essa arma / Ou iremos todos desaparecer / Eu devo saber de algo / Para saber que é tão errado / E acontece que estamos numa emergência / Algumas coisas não eram para ser / Algumas coisas não vêm de graça.
De graça muitas vezes vem um conselho, que quem recebe é quem deve julgar se é bom ou ruim: antes de comprar, guardar, manter consigo ou de levantar sua arma, pense muito bem para que em vez de você vir quiçá a liquidar “heroicamente” um reles e desprezível bandido, daqueles que muitos reputam ser bom só se morto, você não acabe, alucinadamente, fazendo talvez tombar um honrado, digno, inocente e valoroso homem de bem exatamente como você, transformando-se assim num mero réu, sem laurel, sem família e sem liberdade.
* O autor é servidor público federal e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
Comente este post 3i2u5y